MPT exige R$ 165 milhões da Volkswagen por escravidão durante a ditadura

Via @uolnoticias | O Ministério Público do Trabalho (MPT) ajuizou, nesta quinta (5), uma ação civil pública contra a Volkswagen do Brasil, acusando a montadora de explorar trabalho escravo na fazenda Vale do Rio Cristalino, localizada em Santana do Araguaia, Sul do Pará, entre 1974 e 1986.

Ela exige que a empresa pague indenização por dano moral coletivo em um valor não inferior a R$ 165 milhões, o que tornaria a condenação a maior da história em termos de exploração de trabalho escravo. O MPT lembra que os valores recebidos do poder público pela empresa na forma de incentivos fiscais foram da ordem de R$ 500 milhões, em números atualizados para o final de 2022.

A instituição também exige que a empresa reconheça publicamente as violações cometidas, além de assumir compromissos formais para evitar a repetição de práticas semelhantes no futuro. O próximo passo é a notificação da Volkswagen para se defender e participar de uma audiência de conciliação. Depois o processo segue para produção de provas e sentença.

A propriedade, conhecida como Fazenda Volkswagen, foi um dos maiores projetos agropecuários implantados na Amazônia durante o regime militar, período em que o governo incentivava empresas nacionais e multinacionais a investirem na ocupação da região.

A ação, baseada em investigação com depoimentos e provas documentais, destaca que a Volkswagen, por meio de sua subsidiária Companhia Vale do Rio Cristalino Agropecuária Comércio e Indústria (CVRC), se beneficiou economicamente da exploração de centenas de trabalhadores, muitos dos quais submetidos a condições análogas à escravidão.

A denúncia também aponta tráfico de pessoas, jornadas exaustivas, vigilância armada, violências físicas e psicológicas, além de mortes e desaparecimentos associados à repressão de tentativas de fuga. A investigação começou em 2019.

“A partir das provas obtidas, o Ministério Público do Trabalho concluiu, de forma inequívoca, que centenas de trabalhadores foram escravizados no interior da fazenda Volkswagen e tiveram sua dignidade vilipendiada sendo submetidos às mais variadas violências físicas e psíquicas. Foi, portanto, ajuizada a ação buscando a indenização pelas graves violações aos direitos humanos perpetradas pela Volkswagen”, afirmou à coluna Rafael Garcia, um dos procuradores do Trabalho que assinam a ACP.

A reportagem solicitou uma posição à Volkswagen. Tão logo a receba, ela será aqui inserida.

Sim, a Volkswagen tinha uma fazenda

A fazenda foi criada em 1973 com apoio da Sudam (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia) e do Banco da Amazônia, em uma área de 139 mil hectares destinada à pecuária e à extração de madeira. Sob o comando da CVRC, a propriedade recebeu incentivos fiscais do governo militar e foi vista como um símbolo de modernização do campo na região amazônica.

Apesar da infraestrutura oferecida para diretores e funcionários administrativos, incluindo escritórios, escolas, áreas de lazer e serviços de saúde, a realidade dos trabalhadores das frentes de desmatamento e roçagem era outra. A investigação aponta que a fazenda mantinha cerca de 300 empregados diretos, mas as atividades mais duras eram realizadas por peões contratados de forma precária por intermediários de mão de obra, os conhecidos “gatos”.

De acordo com o MPT, os “gatos” recrutavam trabalhadores em comunidades pobres de Mato Grosso, Goiás e, posteriormente, do que viria a ser o Tocantins, com promessas de salários atrativos e boas condições de trabalho. Ao chegarem à fazenda, porém, os trabalhadores eram submetidos a um sistema de exploração que incluía endividamento forçado, jornadas exaustivas e restrições à liberdade.

A cantina da fazenda desempenhava um papel central no esquema de escravidão por dívida. Ao chegarem ao local, os trabalhadores eram obrigados a comprar lonas para construir seus próprios barracos, além de alimentos, ferramentas e medicamentos, todos vendidos a preços exorbitantes. Os valores eram anotados em cadernetas, e o pagamento condicionado à conclusão do serviço contratado, o que raramente ocorria.

Muitos trabalhadores eram informados de que, ao final de meses de trabalho, ainda estavam em débito com a fazenda, perpetuando sua situação de escravidão.

Relatos de trabalhadores apontam abusos extremos

A ação do MPT é sustentada por relatos de vítimas, familiares, testemunhas e documentos coletados durante décadas por organizações como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Grupo de Pesquisa do Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os depoimentos revelam uma rotina de abusos extremos. Trabalhadores descrevem espancamentos e ameaças com armas de fogo.

Os que tentavam fugir eram perseguidos por pistoleiros, apanhavam e, em alguns casos, teriam sido mortos. Há relatos de que corpos de trabalhadores desaparecidos foram supostamente descartados no rio Cristalino ou em grutas próximas à fazenda. Os fiscais e pistoleiros agiam com extrema brutalidade para garantir que ninguém fugisse. Segundo o MPT, havia um clima constante de terror.

Um trabalhador relatou que, ao tentar deixar a fazenda, foi amarrado, espancado e levado de volta ao trabalho forçado. Outro descreveu como fiscais armados disparavam tiros para intimidar os trabalhadores. Há também registros de trabalhadores que morreram de malária sem receber atendimento médico adequado, enquanto os custos dos remédios eram adicionados às dívidas já exorbitantes.

De acordo com o procurador Rafael Garcia, “após cinco anos, a conclusão inequívoca do MPT é que ocorreram os fatos denunciados, a prática indiscriminada de exploração de trabalho escravo, por servidão por dívida, condições degradantes e jornada exaustiva para formação de pasto – fatos que foram financiados por isenções fiscais e dinheiro público aplicados pela Sudam via Banco da Amazônia”.

Trabalho forçado e condições degradantes

As condições nas frentes de serviço eram desumanas, segundo a ação civil pública. Os trabalhadores dormiam em barracos improvisados com lonas plásticas e palha, sem acesso a instalações sanitárias ou água potável. A comida era preparada de forma precária, e a água consumida era retirada de córregos contaminados. Os trabalhadores eram obrigados a manipular herbicidas e realizar queimadas sem qualquer equipamento de proteção, expondo-se a graves riscos à saúde.

As jornadas de trabalho ultrapassavam 11 horas diárias, frequentemente incluindo fins de semana e feriados. Muitos trabalhadores adoeciam ou sofriam acidentes com ferramentas como foices e motosserras, mas não tinham acesso a tratamento médico. Sobreviventes apontam que a saúde era negligenciada e os trabalhadores eram tratados como descartáveis.

No conjunto de provas apresentado pelo MPT, também há inspeções realizadas por comissões parlamentares e relatos publicados pela imprensa na época. A ação também destaca tentativas frustradas de resolução extrajudicial por parte do Ministério Público.

A denúncia defende que as provas coletadas demonstram de forma inequívoca que a Volkswagen, por meio de sua subsidiária, participou e se beneficiou diretamente de um sistema de trabalho escravo e tráfico de pessoas.

Um dos relatórios aponta que a vigilância armada era exercida por empregados diretos da CVRC, que controlavam a entrada e saída dos trabalhadores. Além disso, as denúncias indicam que a empresa era cúmplice do sistema de cantinas que gerava o endividamento forçado. O MPT apontou que a empresa não apenas sabia das práticas, mas permitiu e se beneficiou delas.

“Chamada a participar de negociação, inicialmente participou, mas em março de 2023 ela se retira da mesa de negociação sem mais explicações, apenas informando que não reconhecia a sua responsabilidade”, afirma o procurador Rafael Garcia.

O caso indica a conivência entre empresas e o regime militar no Brasil, que priorizou a ocupação econômica da Amazônia em detrimento de direitos humanos e ambientais. A denúncia contra a Volkswagen não apenas resgata um capítulo sombrio da história brasileira, mas também reforça a importância de responsabilizar grandes corporações por violações cometidas no passado.

“É espantoso que, depois de quatro décadas, uma empresa desse porte anda relutando em reparar seus crimes no Pará, incluindo destruição do meio ambiente e escravidão por dívida. Também é espantoso como o poder público foi omisso na época e como demorou a tomar uma ação mais efetiva agora”, afirmou à coluna Ricardo Rezende Figueira, professor da UFRJ e coordenador do GPTEC, que foi um dos principais nomes na defesa dos direitos humanos no Sul do Pará durante a ditadura.

“Espero que a Volkswagen responda judicialmente pelo crime e espero que outras empresas que concorreram na mesma época no mesmo crime reparem as vítimas diretas ou seus familiares e a sociedade, voluntariamente ou na Justiça. A Justiça deve agir com a máxima celeridade antes que outras vítimas morram”, conclui.

Trabalho escravo contemporâneo no Brasil

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade.

Desde a década de 1940, a legislação brasileira prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Os mais de 63,5 mil trabalhadores resgatados estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades, como o trabalho doméstico.

No total, a pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada desde 1995. Números detalhados sobre as ações de combate ao trabalho escravo podem ser encontrados no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.

Fonte: UOL

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