A neurociência visita Freud – 27/10/2024 – Luciano Melo



“Eu sei que não é bom para mim, mas meu cérebro manda fazer, e eu faço de novo.” Eu aposto um livro de interpretações de sonhos, ganha a leitora que provar nunca ter ouvido algo assim, mais de uma vez. A frase transmite um conflito mental da razão contra uma força submersa, e deixa evidente a fissura do “ser”. Vulgaridades à parte, naquela frase há a prova de que Ele está entre nós. Ele é Sigmund Freud, o neurologista que criou conceitos sobre o inconsciente, frequentes até em nossas conversas despretensiosas.

Esta presença demonstra o inegável: Freud foi um dos pensadores mais influentes do século passado. Contudo, a fama, expôs o tamanho de seu telhado de vidro, de proporções a um obelisco fálic… ou corrigindo meu ato falho, de um obelisco faraônico. Seus estudos de caso são nada confiáveis, repletos de afirmações absurdas e generalizações.

Para muitos cientistas, Freud foi capaz de enganar o mundo todo, um especialista em fazer com que conclusões extravagantes parecessem genialidade. Frank Tallis, psicólogo, ainda que ciente destes pontos, defendeu Freud em artigo recente publicado na revista Brain. Ele inicia sua argumentação nos recordando que Galileu não é reconhecido pelos horóscopos que fazia. Por analogia, seria justo, então, relembrar Freud apenas por suas inconsistências? Houve acertos, inclusive em sua quase esquecida fase de neurologista tradicional.

Freud foi aluno de Charcot, o fundador da neurologia moderna, e escreveu uma monografia importante sobre distúrbios de linguagem. Quando estudante, ele explorou o emergente campo da microscopia neural. Porém, não avançou, pois sofreu do antissemitismo das academias austríacas. O preconceito talvez tenha sido um empurrão que o fez mudar seu foco de estudos dos nervos para a mente.

A defesa de Tallis a Freud prioriza esta nova fase e recorre a Robert Trivers, o fundador da sociobiologia. Para Tallis, Trivers confirma Sigmund Freud pois teorizou que a seleção natural tratou de preservar alguns aspectos inconscientes, de modo a evitar sinais sutis de autoconhecimento. Desta forma, o cérebro humano evoluiu para o autoengano. A vantagem dessa distorção é adaptativa, quanto melhor mentimos para nós mesmos, melhor enganamos os outros. Portanto o conflito inconsciente versus razão opera para que não tenhamos uma ideia clara a respeito de nós mesmos.

Outro cientista citado por Tallis é Robin L. Carhart-Harris psicofarmacologista da Universidade da Califórnia. Diferente de Trivers, Carhart-Harris é explícito em defender Freud. Para o psicofarmacologista os recursos modernos confirmam, em certa medida, as ideias freudianas de que a cognição humana é dividida em processos primário e secundário. O primário é evidente em situações não ordinárias, como em sonhos e na loucura, não é organizado e flui livremente. Seria, portanto, uma forma de consciência mais primitiva (o id). O secundário integra ou vincula o processo primário e seu sistema representacional. Também suporta as concepções da realidade testável e o processamento das percepções. Dessa forma, organiza uma outra instância de consciência, mais coesa (o ego). Em simplificação, Freud sugeriu que pensamentos ou ações que emergem do cérebro, dependem de como o ego incorpora ou suprime as forças inconscientes.

Técnicas modernas de imagens do funcionamento cerebral, demonstram a existência de uma estrutura organizada em uma ampla rede de neurônios cerebrais, que é responsável pela introspecção. Esta cadeia neural, denominada de rede de modo padrão, discrimina o que é real daquilo que é apenas um produto de atividade cerebral irrelevante. Estas diferenciações formatam a concepção da realidade testável e o fluxo de pensamentos. O indivíduo com distúrbios da rede de modo padrão pode romper com a realidade. Para Carhart-Harris está aí o mecanicismo biológico que contempla a ideia de Freud, do processo secundário “abafando” um primário.

Vale lembrar que o primeiro psicanalista foi também pioneiro em tentar conciliar psicanálise e ciência, quando em 1890, escreveu rascunhos do ‘Projeto para uma Psicologia Científica. Mas a escassez de conhecimento e tecnologia naquele tempo, fez Freud depender de ‘imaginações, transposições e suposições’, e desistir de seu projeto. A sofisticação veio, e atualmente com estes recursos disponíveis, ainda não conseguimos mapear o que é autoconsciência ou a consciência do ambiente. Muito menos, vencer as doenças mentais. As sínteses de Frank Tallis e Robin L Carhart-Harris, podem soar abstratas, ambiciosas e especulativas. Mas são um ponto de partida importante. No entanto, Sigmund Freud tem muito mérito. Ele contribui para que pessoas sejam ouvidas, e apontou a importância dos acontecimentos sócio familiares para toda a vida, especialmente na infância. E iniciou as terapias conduzidas pela fala.

Referências

Frank Tallis, We should still pick up the pearls: on the scientific status of Freud, Brain, Volume 147, Issue 4, April 2024, Pages 1115–1117, https://doi.org/10.1093/brain/awad414

Von Hippel W, Trivers R. The evolution and psychology of self-deception. Behav Brain Sci. 2011 Feb;34(1):1-16; discussion 16-56. doi: 10.1017/S0140525X10001354. PMID: 21288379.

Carhart-Harris RL, Friston KJ. The default-mode, ego-functions and free-energy: a neurobiological account of Freudian ideas. Brain. 2010 Apr;133(Pt 4):1265-83. doi: 10.1093/brain/awq010. Epub 2010 Feb 28. PMID: 20194141; PMCID: PMC2850580

Mechelli A. Psychoanalysis on the couch: can neuroscience provide the answers? Med Hypotheses. 2010 Dec;75(6):594-9. doi: 10.1016/j.mehy.2010.07.042. Epub 2010 Aug 14. PMID: 20709458.

Vijayaraghavan S, Ross DA, Novick AM. Under the Microscope: Nerve Glue and the Evolution of Psychiatric Neuroscience. Biol Psychiatry. 2024 Nov 1;96(9):e11-e13. doi: 10.1016/j.biopsych.2024.08.017. PMID: 39357969.

Trivers, R. (2010). Deceit and self-deception. Mind the gap: Tracing the origins of human universals, 373-393.


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