O vendedor, simpático, me levou até os infantis, no fundo da loja. Eu precisava comprar um livro para presentear um menino de 11 e outro para uma menina de nove. Era uma livraria pequena, charmosa, dessas em que só de entrar você já se sente contribuindo na luta contra o monopólio das big techs e a substituição dos humanos por robôs.
“Esse aqui é do Saramago.” Já tinha lido e peguei o livro por educação. As ilustrações são lindas, mas o texto é chato, coisa de quem não tem noção do que é uma criança. Um homem senta-se diante do mar: “A necessidade o trouxera. O alimento que a Terra tantas vezes lhe negou, pródiga de secas, pestes e dilúvios, o mar lho oferecia sem medida, não pedindo, em troca, mais do que a simples moeda da coragem”.
“Esse aqui é sobre reciclagem. Tema superimportante.” “Esse é sobre refugiados.” “Esse é sobre biomas brasileiros.” “Esse é sobre a Declaração Universal dos Direitos da Criança.” “Esse é sobre gênero.” “Esse é sobre racismo.” “Esse é de lendas amazônicas.”
Conforme o tempo ia passando e os livros se acumulando nos meus braços, foi me dando um mal-estar e uma culpa. Não sabia exatamente a razão do mal-estar, mas era dele que vinha a culpa: como poderia estar incomodado diante daquela pilha de obras tão bem-intencionadas, trabalhos que inequivocamente lutavam por um mundo mais justo, igualitário, pacífico, sustentável? Não é uma coisa maravilhosa educar as crianças para se tornarem adultos conscientes e engajados?
Claro. Mas antes de serem importantes, urgentes ou relevantes, aqueles livros (e todos os outros, pra qualquer idade) deveriam ser interessantes, engraçados ou comoventes. Provavelmente havia, entre as sugestões, algumas boas histórias, mas me chamou a atenção a curadoria ignorar o prazer da criança, priorizando somente os temas —que agradavam, claramente, aos adultos. O vendedor não soltou sequer uma frase do tipo “esse aqui as meninas adoram” ou “esse é hilário” ou “esse não dá pra parar de ler”. Embora bem-intencionada a escolha era, na acepção mais pura da palavra, paternalista.
Finalmente entendi meu incômodo. Estávamos na antevéspera da eleição e a distância entre o vendedor e as crianças me pareceu análoga à distância entre a esquerda e a sociedade. Como o livreiro, a esquerda tem na mão dúzias de pautas importantíssimas, mas não consegue chegar nos eleitores, pois se esqueceu que precisa, antes de mais nada, empolgá-los, comovê-los.
Uma criança não começa a comer brócolis porque dizemos que é rico em vitamina C e flavonoides, mas porque o refogamos muito bem com azeite, cebola, alho, temperamos com umas gotas de limão ou um fiozinho de shoyu. Da mesma forma, uma criança não pega gosto pela leitura porque é importante combater o aquecimento global, acomodar os refugiados ou salvar o boto-cor-de-rosa, mas porque é apresentado à cor “Flicts”, porque quer saber “Quem soltou o pum?”, porque se apaixona pela história de um menino que mora debaixo de uma escada e descobre ser um bruxo poderoso do lado de lá da plataforma 9¾ de uma estação de metrô em Londres.
Nas últimas décadas, enquanto a direita dominava Sonserina e treinava disciplinadamente as técnicas do Quadribol digital, a esquerda Lufa-Lufa perdia o pulso da sociedade, achando que bastariam, como forma de persuasão, os nobres ideais impressos em suas lombadas. Não sei como barrar o poder ilimitado das big techs nem impedir nossa substituição por robôs, mas a luta certamente requer “mais do que a simples moeda da” virtude.
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Publicitário e Jornalista.