Angústia e melancolia são duas das marcas do lugar, ainda mais apartado por conta da pandemia. Enquanto dona Alberti tenta contornar a noite, também busca se entender com os próprios pensamentos numa cabeça já não tão confiável quanto outrora.
Intimidade e a garantia de um espaço pessoal também parecem ser coisas de outro tempo, raridades no Hotel Paraíso. “Não há mais nada que seja só meu, nem o meu corpo, nem o meu espírito.”
Dona Alberti é a protagonista de “Misericórdia”, romance de Lídia Jorge que acaba de chegar no Brasil pela Autêntica Contemporânea. Uma das escritoras portuguesas mais importes em atividade, inspirada pela fase final da vida de sua mãe que Lídia constrói uma narrativa de admirável sensibilidade e notável beleza. É uma das grandes leituras do ano por aqui.
Como não poderia deixar de ser, há tristeza e certo saudosismo em diversas passagens de uma história assombrada pela morte, com uma série de sujeitos díspares vivendo seus últimos dias. Mas há também muita vida, muita busca por alguma alegria, por momentos de felicidade, por aventuras que sigam dando sentido à existência neste universo.
Entre brincadeiras, hábitos rotineiros e atividades extraordinárias que muitas vezes soam como ciladas, os residentes do Hotel Paraíso seguem com a vida em sua complexidade. E aqui ressalto outro mérito de Lídia: entregar aos leitores um romance povoado por personagens cativantes.
São idosos que buscam pela dignidade em meio à decadência, que não se conformam com suas condições, que perseguem mais alguma fagulha daquilo que sempre lhes alegraram. Enquanto a vida persiste, as transformações nunca cessam. Muitas vezes relegados pela família, constroem novas amizades, novos elos de afeto e enxergam nas descobertas dos mais jovens uma oportunidade para expandir suas experiências.
Publicitário e Jornalista.