O serviço da morte – 30/10/2024 – Thaís Nicoleti



A morte do poeta Antonio Cicero, no último dia 23 de outubro, parece ter posto o suicídio em novo patamar de discussão. O tema é uma espécie de tabu na sociedade, ocultado ao máximo. Nas redes sociais, a morte de quem tira a própria vida é representada graficamente por um “m” seguido de asterisco (m*).

Há um consenso de que não se devem divulgar as motivações das pessoas que cometem o ato extremo e, menos ainda, os métodos empregados para o atingimento do objetivo. Ao digitarmos a palavra “suicídio” no Google, a inteligência artificial nos remete ao telefone do CVV (Centro de Valorização da Vida). Essas convenções se explicam pelo esforço de evitar algum estímulo inadvertido à ideação suicida. O último mês de setembro, aliás, foi dedicado a uma campanha de prevenção ao suicídio.

O caso de Antonio Cícero, porém, mereceu um tratamento diferente, o que talvez se deva mais à forma que ao conteúdo. Ele usou o serviço da Associação Dignitas, na Suíça, onde o procedimento é legal. Deixou uma carta que se encerra com a frase “Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade”, uma variação sobre o lema da instituição (“To live with dignity, to die with dignity”). O gesto do poeta, que tinha recebido diagnóstico de Alzheimer no ano passado, foi visto como “racional”, “corajoso” e, sobretudo, “digno”.

A própria palavra “suicídio”, nesse caso, vem sendo substituída por “eutanásia”, porque esta última enfatiza o alívio do sofrimento (“morte suave”), ainda que haja uma distinção entre uma coisa e outra. Eutanásia é um procedimento realizado pelo médico, enquanto o suicídio assistido é realizado pela própria pessoa em ambiente controlado.

Neste ano, já tínhamos sido confrontados com o tema do suicídio no noticiário em outras duas ocasiões. Em agosto, houve o caso do jovem de 14 anos, bolsista em uma escola frequentada pelas classes mais altas da sociedade paulistana, que tirou a própria vida; um pouco antes, uma moça de 27 anos, que sofre de neuralgia do trigêmeo, fez uma “vaquinha” nas redes sociais para angariar os recursos necessários para viajar à Suíça, onde se submeteria à morte assistida. Ela conseguiu levantar o dinheiro, mas seu apelo também chegou a médicos, que lhe ofereceram outro tipo de ajuda: tratamento. Aparentemente, ela melhorou da “pior dor do mundo”, como é descrita a manifestação da doença, e adiou a ida à Suíça.

A rapidez com que a moça obteve os donativos para realizar o suicídio assistido mostra que a sociedade parece aceitar bem esse tipo de solução. Houve até quem se queixasse de ter dado dinheiro e ela ter mudado de ideia, mas essa é outra história. O fato é que, depois de Antonio Cicero, já surgem reivindicações de mudança na legislação em nome do direito de escolha dos indivíduos, sob alegação de que a prática é permitida nos países avançados e de que estaríamos atrasados nisso também.

É claro que não se pode condenar alguém por almejar o próprio fim e tomar providências para fazê-lo “com dignidade”, ou seja, com a devida assepsia hospitalar, mas talvez não devesse estar ausente do debate o significado para a sociedade como um todo do suicídio de um de nós. De alguma forma, falimos todos.

Qualquer suicídio é fruto de desespero interior, de solidão, de medo, de impotência, de vergonha. Não seria exagero dizer que muitas pessoas sentem, em diferentes momentos da vida, vontade de morrer diante de desafios que fazem parecer que todas as portas se fecharam de uma só vez. Na hesitação, ante o medo das consequências em caso de não ter êxito, como as sequelas físicas e o estigma de suicida, a vida acaba oferecendo novos caminhos e oportunidades.

O suicídio assistido certamente é racional do ponto de vista da empresa que o oferece como serviço. A Dignitas desestimula as tentativas de cometer suicídio por conta própria com base justamente nessa possibilidade de insucesso, que inexiste no procedimento assistido. Naturalmente, há alguns protocolos para garantir que a pessoa esteja tomando a decisão por livre e espontânea vontade, na plenitude de suas faculdades mentais etc. Talvez a carta de despedida seja parte desse protocolo.

A forma de realizar o ato aparece como algo organizado e eficiente, o que parece bom, mas o sentimento que conduz alguém a esse desfecho, ao que tudo indica, é o velho e humano desespero dos mortais, com o qual cada vez menos a sociedade sabe lidar.


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