O velho Machado de Assis veio filosofar, lá pelos idos de novembro de 1877, sobre a sua ideia do “nascimento da crônica” entre nós, o seguinte: “Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas”. E relata a conversa de duas amigas que, antes do jantar e da merenda, sentam-se à porta da casa, ambas a “debicar os sucessos do dia”. Nada mais machadiana do que a palavra debicar, no seu direto sentido de comer “aos bocadinhos”.
Ler o excelente “Cão Mijando no Caos” (Editora Galáctico), de Xico Sá, me fez remeter que o Bruxo do Cosme Velho tinha certa razão —e no caso do Sá, eu apenas trocaria vizinhas por vizinhos, na acepção coletiva, para designar elas e eles, em grupos juntos ou separados.
Certas modalidades de escrita —ou seus gêneros— subvertem padrões e confinamentos semânticos. Não é só o caso da crônica, mas é o caso de Xico Sá que mama na teta dessa “ressaca cívica” de narra causos das nossas turbulências nacionais.
Poderia passar desapercebido como muitos nesses últimos séculos e meio —alguns “flanando” como o rabugento Alencar; outros —feito o caramujo Machado— com o ouvido colado na conversa alheia, feito o mais sisudo dos bisbilhoteiros natos.
Xico Sá vai além —mas nem melhor, nem pior. Ele é apenas o Xico Sá de sempre, destro e genial. E ponto. Também não precisa de mais para quem escreve, como um modelador de diamantes, a “fabula nada fabulosa para rir do próprio sufoco”. Na verdade, do sufoco dos outros.
O moço, que os orixás o tenham nessa jovialidade para nossa eterna alegria, não é um flâneur qualquer, como muitos antigos; pratica, no sentido latu, o “trottoir” coletivo, ali no Passeio, batendo suas pernas esvoaçantes, de caderninho a tiracolo, catando sua “motivação particularíssima” para rabiscar uns unguentos artigos literários, espécie de advertência, “fragmentos do discurso” amoroso e sentimental, como ele próprio, sentimental e humano, longe do cenário sombrio, mesmo por um triz, nos faz supor.
Este “Cão Mijando no Caos” é o testemunho moral de nossas imperfeições. O cronista em Xico Sá “boulevargeia” na multidão, errante e vadia —mas observando, com sua luneta mágica, os errantes e a vadiagem também.
Não é só das diferenças constituídas, mas as sobrepostas, de que trata, a sua matéria-prima. Em pouco mais de sessenta textos-mijação, o Sá refoga, como destro cozinheiro que aproveita as sobras, os mexericos alheios, e fala do “golpe” à pandemia; de diálogos capilares ao cio da cadela —tudo para zurzir com sufoco, o alívio e a ressaca democrática. Se é que a crônica seja democrática, como quem, no geral, as pratica.
Diante do “Cão Mijando no Caos”, que evoca essa máxima drummondiana, o mais mineiro dos cronistas (sem desmerecer outros mineiros, igualmente outros cronistas), penso em dar razão ao mais velho de nós todos —o Bruxo do Cosme Velho, esse quase-sinônimo de tudo, bisbilhoteiro-mor e espécie de avô do nosso ofício.
Debicando, como diz os antigos, aos pedacinhos, as crônicas de “Cão Mijando no Caos”, eu me sinto a cadela no cio do autor —janto até os ossos.
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Publicitário e Jornalista.